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Cum sociis natoque penatibus et magnis

    Textos e mídia

    Cyro Almeida e Júlio Santos revisitam a fotopintura com olhar no presente | Carlos Andrei Siquara

    Você já deve ter se deparado alguma vez com um retrato antigo, provavelmente na casa do seus avós, que despertava uma certa dúvida: isso é fotografia ou pintura? Então, tecnicamente, aqueles trabalhos são um pouco dessas duas linguagens, pois dependem de uma sobreposição de procedimentos, e, por isso, são chamados de fotopinturas. Essas se desenvolveram no Brasil, a partir dos anos 30, quando a fotografia 3×4 se popularizava, impulsionada pela exigência do registro fotográfico em documentos, a partir do governo de Getúlio Vargas (1882-1954).

    Não à toa, as composições ligadas a essa vertente obedecem sempre a uma captura frontal – como ainda são feitos os cliques voltados para a produção da carteira de identidade, do passaporte, dentre outros. A formalidade fixada naqueles retratos 3×4 era, posteriormente, “amaciada” pelas mãos de artistas como o cearense Júlio Santos, 76, que é um dos últimos especialistas em fotopintura do país. Vestidos, ternos, broches, lenços eram aplicados sobre a imagem com precisão, enquanto cabelos e até a fisionomia dos retratados eram retocados com o mesmo cuidado.

    Foi em busca desse saber, hoje bastante raro, que o fotógrafo mineiro Cyro Almeida, 35, estreitou laços com Santos – o mestre com quem ele assina a autoria de 56 obras apresentadas na exposição “Deslimites da Memória”, em cartaz no Museu Mineiro até 3 de maio. O primeiro encontro entre os dois aconteceu por acaso. Em 2012, Almeida estava em Belém, onde Santos foi realizar uma palestra e uma oficina.

    O fascínio do fotógrafo com a expertise de Santos, ao ouvi-lo falar do seu trabalho e de sua história, foi imediato. E, ao relatar suas impressões para o palestrante, este logo fez o convite para que Almeida lhe fizesse uma visita em Fortaleza. Dois meses depois, o mineiro desembarcou na capital cearense, e dali em diante começou, entre os dois, um amizade que foi amadurecendo por meio de ligações e de visitas posteriores. Até que, em 2016, o visitante propôs uma parceria, que resulta na série inédita exibida agora em Belo Horizonte.

    Almeida conta que tinha um projeto em mente, mas deu carta-branca para Santos contribuir com sua arte, seguindo suas próprias escolhas. “Desde o início, eu entendo esse trabalho como algo coletivo. Não é uma pintura do mestre Júlio em cima de uma fotografia de Cyro: são fotopinturas de Júlio e Cyro, mas com etapas em que um teve um protagonismo maior do que o outro”, pontua o fotógrafo.

    Processo

    Ao revisitar uma prática considerada obsoleta, Almeida teve a ideia de incorporá-la a partir dos olhos de hoje. E, assim, em vez de recorrer aos baús das famílias, ele navegou pelo Instagram. Na rede social, o fotógrafo encontrou perfis de vários jovens, o que o motivou a chamar alguns deles para performar diante de sua câmera analógica, repetindo as mesmas poses das selfies publicadas por eles na plataforma virtual.

    “A maioria deles é de Belo Horizonte, exceto três irmãs que são de Araxá (cidade natal de Almeida). Depois, eu selecionei alguns negativos, ampliei as imagens em preto e branco e as levei para o mestre Júlio, que ficou responsável por finalizá-las”, detalha Almeida.

    Justamente por replicar fotografias descontraídas, que se distanciam do padrão 3×4, as imagens com as quais Santos precisou trabalhar eram muito distintas daquelas a que estava habituado. “Eu recebia os retratos num envelope com uma descrição exata do que o cliente queria: ‘pintar olhos e cabelos castanhos, paletó azul marinho, botar um lenço e uma caneta no bolso, uma gravata vermelha’, fazer isso e aquilo. Quando eu recebi as imagens de Cyro, eu encontrei modelos completamente inusitados. Uns estavam com a língua pra fora, outros com piercings no rosto, e aquilo me fez repensar nas fotografias do passado e no momento das imagens feitas hoje”, relata Santos.

    “Deslimites da Memória”, que tem curadoria da portuguesa Ângela Berlinde, propõe, assim, uma brincadeira com essas fronteiras. Almeida comenta que o público poderá se surpreender com a mostra, incluindo os retratados, pois eles ainda não viram os trabalhos finalizados.

    “Acredito que alguns espectadores vão entrar na galeria e identificar a fotopintura. Mas poderão ter um certo embate com as obras ao perceber que as pessoas ali retratadas são muito diferentes de um padrão que eles talvez conheçam. Já os mais jovens vão se identificar de imediato, mas também é possível que estranhem a técnica, que ainda podem desconhecer”, avalia.

    Originalmente publicado em: Jornal O Tempo. Belo Horizonte, 09/03/2020.
    À espera do mundo | Ângela Berlinde

    Há algo de mágico na Fotografia que parece ter conquistado o Mundo. As primeiras tecnologias fotográficas foram produzidas na década de 1830 e, ao longo de dois séculos desde então, a câmera fotográfica passou a ser uma das ferramentas mais usadas. Apesar da proliferação desenfreada da era digital, a Fotografia mantém, até hoje, uma espécie de atração mágica inevitável.

    No frenesi de acessos, comunicações e deslocamentos, o tempo escoa, falta, acaba, sufoca. Mas, como captar a vida que enredada em tais fluxos, corre em direção a um futuro incontornável? O certo é que desde a invenção da Fotografia, as “máquinas da visão” sempre se alimentaram dessa utopia moderna que consiste em aspirar ao domínio do tempo e, por conseguinte, prefigurar a sublime ambição pela eternidade.

    Ora, no alvorecer do milênio, Cyro Almeida (MG, 1984) e Júlio Santos (CE, 1944) abrem uma brecha na pressa dos tempos, ousando apresentar uma obra híbrida, composta de múltiplas poéticas visuais. O encontro entre os dois nasce de um extraordinário  amor pela Fotografia e pela Fotopintura, técnica particularmente difundida no Nordeste do Brasil. Numa troca crescente de técnicas e saberes entre o tradicional e o contemporâneo, os autores unem-se numa aventura arqueológica em torno da imagem, em busca de respostas pelo presente, escavando as camadas do imaginário que se foram sobrepondo ao longo da história. O mundo é pois composto de mudança[1] e, numa proposta de lutar contra o esquecimento, Cyro Almeida e Júlio Santos ousam agarrar a lentidão do  tempo, em plena liberdade, tarefa que à primeira vista parece pertencer ao domínio das estrelas.

    Estamos perante uma composição entre-tempos levada por autores de distintas gerações e origens que se atrevem a compor um retrato da geração Z _ nascida na era da internet _ absorvendo os seus modos de ser e estabelecendo uma ligação entre seus estilos de cores vibrantes, desejos e inquietações. A obra apresenta uma reflexão sobre a experiência de representação da juventude de Belo Horizonte, registrando os seu códigos visuais e suas complexidades sociais. Aqui o tempo procura ensejo para ser concebido não só da perspetiva funcional, pragmática, mas também em seu caráter poeticamente trágico.

    Cyro Almeida fita, através da sua câmera analógica de médio formato, as poses e atitudes dos “selfies” desta juventude suspensa, enquanto Júlio Santos, mestre da Fotopintura e, um dos seus derradeiros expoentes vivos, pinta os retratos dessa geração por meio da tradicional técnica que parece ser a representação ideal da figura humana, a sublimação de um momento precioso.

    Num gesto performático e provocador, Júlio Santos renova-se a óleo e pastel no seu cavalete em Fortaleza, deixando perceber a sua força em se reinventar e lutar contra o esquecimento. Cyro Almeida, maravilhado por essa fúria de viver, junta-se nessa trajetória, trazendo novas camadas ao processo, num profundo respeito pelo Retrato que aqui ganha uma tonalidade versátil e fabular.

    Encontros desses são preciosos, pela sua singular capacidade de proteção, de fazer valer a importância histórica de técnicas que se viram suplantadas pela vertigem dos tempos e nos convidam a refletir sobre o lugar da Fotografia no tempo presente. Juntos, Júlio e Cyro, trazem à tona uma constelação de imagens que mesclam vários tempos, tal qual apontamentos sobre a origem da Fotografia: o tempo dos ofícios, o tempo das tecnologias, o tempo das imagens.

    Composta por uma expografia que agrega fotopinturas, provas de contato e um vídeo que documenta o processo, a mostra “Deslimites da Memória” apresenta uma geração que, num grito de liberdade e experimentação, não tem medo de ousar em seus cabelos coloridos, piercings e maquiagem. A essa juventude, mesclam-se os paletós, gravatas, vestidos estampados e outras indumentárias típicas das fotopinturas no século XX. Azul, verde, amarelo, rosa, lilás: a paleta de hipóteses não tem fim e abre-se em êxtase como uma marca viva e fluída da contemporaneidade.

    A técnica de pintar as fotografias, traz à luz as questões sentidas por esta geração suspensa que enfrenta, uma vez mais, um mundo cheio de questões: identidade e gênero, feminismo, racismo e religiosidade, num momento de transição entre choque e mudança, de extrema fragilidade que revelam as inevitáveis angústias que os futuros sempre trazem. Numa espécie de presságio, esses retratos mostram-nos de forma poética a singularidade da vida, a esperança e as expectativas dos novos olhares num balanço entre ficção e realidade.

    Que recordações teremos dessa geração e que futuros a esperam? Olhamos estes retratos, tanto quanto somos observados por eles. Ao tropeçar nas fissuras da Fotografia e atentar contra o jogo especular das aparências, os autores lançam algumas pistas para a interpretação da vastidão do universo, rico de luz e cores que expressam a alma e o espírito poético do homem e revelam através da Fotopintura, alguns dos conceitos matriciais da humanidade. Trata-se de um lugar onde o imaginário se assume como um grande teatro da memória _ amplo e aleatório, labiríntico e metamórfico _ no qual todas as constelações são possíveis, em nome de um espaço-tempo onde a magia da captura da realidade permite um encontro entre experiência, memória e contemplação. Esse parece ser o pacto e a visão deste encontro de Júlio e Cyro: o antigo e o novo sonho da Fotografia.

     

    [1] “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades” é um poema de Luis Vaz de Camões e é o primeiro álbum solo do cantor português José Mário Branco (1942-2019), gravado em 1971 em Paris, onde o cantor esteve exilado devido à ditadura salazarista. É um marco incontornável da música portuguesa.

    Apresentação da exposição Deslimites da memória. Cyro Almeida e Mestre Júlio Santos. Museu Mineiro. Belo Horizonte, 2020.
    Cyro Almeida, a fotografia e os usos das imagens | Gil Vieira Costa

    A arte contemporânea já acumula um debate extenso a respeito das questões instigadas ou condicionadas pela prática fotográfica. De certo modo, a arte contemporânea por si só muitas vezes opera de maneira ‘fotográfica’, mesmo quando não recorre à fotografia em sentido estrito. É necessário pensar o trabalho de Cyro Almeida dentro desse repertório teórico e artístico fornecido pela história recente.

    Cyro Almeida vive em Belo Horizonte e desenvolveu parte de sua produção artística em Belém. Nesta última cidade, realizou entre abril e junho de 2018 a exposição Isolamentos e fluxos, com curadoria de Mariano Klautau, no Espaço Cultural Banco da Amazônia. Aqui, quero examinar alguns aspectos de obras nessa mostra.

    Em parte das fotografias de Cyro Almeida, são as personagens que estão evidenciadas – coletividades, individualidades e singularidades demarcadas pelo retrato. Em outros momentos, os cenários também saltam para o primeiro plano, com sua cultura visual típica da periferia de Belém.

    No conjunto, a mostra parece se debater com um (entre outros possíveis) grande referencial para a fotografia contemporânea em Belém: Luiz Braga. Manifesta um diálogo com o retrato social realizado por Braga desde o final dos anos 1970, captando personagens de grupos subalternizados, e também se relaciona com a série No olho da rua ou Visualidade popular, em que o artista se voltou para a cultura visual desses grupos e as reelaborou em uma fotografia de viés modernista e construtivo.

    É um fato notável que Cyro Almeida perceba, absorva, aprofunde e desdobre questões colocadas pela obra de Luiz Braga. Indica que os artistas brasileiros, e mais ainda os que atuam/atuaram fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, nas últimas décadas conseguem ter força suficiente para se inscreverem na dinâmica da produção artística de gerações posteriores. Esse talvez seja um fenômeno recente: o esboço de uma superação da amnésia que condiciona a produção artística especializada no Brasil, no geral voltada para artistas, obras, conceitos, categorias, questões e cosmovisões estrangeiras.

    Porém, para um público com algum conhecimento sobre a fotografia contemporânea em Belém, essas convergências entre as obras de Cyro Almeida e as de Luiz Braga são percebidas sem muito esforço. Isto é o que as obras nos dão se nos aproximarmos delas em busca de uma interpretação esteticista, preocupada sobretudo com as aparências e superfícies. É preciso ir além.

    Em Belém, há uma questão importante que sua obra levanta, com a investigação de trajetos e da simbolização de espaços, especialmente periferias urbanas. Parte das fotografias expostas em Isolamentos e fluxos foi realizada por Cyro Almeida no projeto Pequena rota do insuspeitável, produzido com recursos do XV Prêmio Marc Ferrez de Fotografia, Funarte, 2015. O site do artista descreve o projeto nos seguintes termos:

     

    Pequena rota do insuspeitável aborda cinco bairros periféricos de Belém-PA, considerados áreas de risco da violência e conectados pelo transporte urbano alternativo, as vans. As fotografias não tratam da violência urbana e por isso desafiam a pensar como a representação estereotipada, a distinção social e fantasia do medo, quando repetidas exaustivamente contra essas regiões periféricas, reforçam estigmas e a própria violência que criticam.

     

    O grande tema de fundo que parece interessar a Cyro Almeida é a cidade. Ou melhor, as cidades, já que com sua produção ele fricciona territórios e grupos, que coexistem sem coabitar. “Pequena rota do insuspeitável” e “Isolamentos e fluxos” são títulos que remetem a esses deslocamentos que sua fotografia promove nos espaços urbano e simbólico. Sua série Dandara, realizada entre 2011 e 2014 a partir de uma ocupação na periferia de Belo Horizonte, também toca no assunto.

    Flanando de maneira algo sistemática, nas periferias interditadas pelo discurso do risco, Cyro Almeida constrói um repertório de imagens em sua prática fotográfica, ao mesmo tempo em que subverte ou desconstrói outro repertório. O artista parece querer desengatilhar algumas imagens sobre aquelas periferias. Não as suas próprias, que maneja por meio da prática fotográfica, mas as imagens dos discursos que estereotipam certos territórios como espaços de violência potencial.

    Cyro Almeida expõe não apenas as fotografias, resultado de seu encontro com essa cidade arriscada ou proibida, mas apresenta também seu trajeto e sua relação com esse Outro, e assim termina revelando as imagens da violência discursiva que se sobrescrevem a essas periferias. Seu trabalho parece querer remover uma grossa casca de estereótipos, múltiplas camadas que escondem sob si as cidades ‘reais’ e seus personagens.

    Entre os anos 1980 e a última década, Luiz Braga mudou seu foco das periferias urbanas de Belém para as comunidades interioranas na Ilha do Marajó. Nessa transição, talvez haja alguma busca por uma ‘identidade’ local ou regional, já ausente nas periferias que lhe interessaram no início da carreira. E é plausível considerar que haja, também, para o fotógrafo, essa interdição das periferias urbanas por conta da violência exacerbada (seja ela discursiva ou concreta).

    Cyro Almeida traça uma rota na contramão: sai do sudeste do país, Belo Horizonte, para se relacionar com um centro urbano mais violento (ao menos nas estatísticas). Parece que lhe interessa conhecer e apresentar, em uma abordagem documental e poética, as cidades recalcadas pelas imagens e discursos da violência.

    Tanto a relação de Luiz Braga quanto a de Cyro Almeida com os grupos sociais das periferias de Belém (e suas visualidades) é mediada pela alteridade. Há uma diferença difusa – cultural, étnica, de classe? – que envolve esse contato entre os fotógrafos e seus personagens. Essa relação com um Outro tem sido uma das chaves de recepção crítica da obra de Luiz Braga. E faz parte, também, da leitura de Isolamentos e fluxos, de Cyro Almeida, ainda que em uma direção distinta. Nas palavras de Mariano Klautau, no texto curatorial da exposição:

     

    O ato fotográfico se torna para muitos artistas, para além da imagem fotográfica realizada como resultado, um exercício de contato e conhecimento do outro. É dessa experiência essencial que a fotografia vem modificando a tradição da fotografia de rua e do retrato. Cyro Almeida faz um cruzamento hábil desses dois gêneros (…).

    O trajeto escolhido pelo artista não só marca seu interesse pela cultura urbana e o modo de vida dos habitantes dos bairros populares como também sua posição reativa a uma cultura da violência que vem sendo disseminada nas cidades brasileiras.

     

    Como desengatilhar ou desarmar as imagens que se sobrescrevem às periferias, construídas por uma vasta rede discursiva? É possível ‘violentar’ a violência simbólica que interdita e estereotipa espaços e cidades?

    Parto da noção de imagem formulada por autores como Hans Belting e Georges Didi-Huberman, compreendendo que nossa relação com as imagens se dá em um processo que envolve: a) nossa percepção; b) um ‘objeto’; e c) a imagem que construímos a partir de nossa percepção desse objeto. É o que Belting chama de tríade imagem-meio-corpo. As obras de arte são ‘meios’ para as imagens, tanto quanto o somos nós próprios, com nossas percepções e estruturas de pensamento.

    As imagens não ‘estão’ exatamente nas obras de arte, como se fossem um dado físico adicionado aos objetos e que existisse neles indefinidamente, pigmentos de tinta numa superfície. As imagens estão antes na relação de grupos sociais com esses objetos – elas dependem das obras e, ao mesmo tempo, existem ‘fora’ delas, pois existem sobretudo em nós. Na terminologia de Belting, podemos tratar das obras de arte como ‘meios imaginais’, que produzem ou modificam nossas próprias ‘imagens mentais’.

    Isolamentos e fluxos parece propor uma leitura antropológica sobre nossas relações com as imagens que fabricamos e consumimos. É uma abordagem sobre como o ‘nós’ que designa o campo artístico especializado – um ‘nós’ cultural, étnico e de classe? – se relaciona com as imagens sobre as periferias urbanas. Imagens sobre a violência, que muitas vezes condicionam nossas relações com as cidades, seus espaços, territórios e personagens.

    O modo como Cyro Almeida registra a relação de populações periféricas com as práticas fotográficas também é interessante para ilustrar o assunto. Algumas obras captam outros quadros dentro do seu próprio enquadramento, imagens presentes no ambiente fotografado, que se relacionam de algum modo com a imagem construída pelo artista. Em uma das fotografias na mostra, um banner se coloca como meio para a cultura fotográfica periférica, talvez (pelas dimensões) um simulacro da fotografia ou da pintura do campo artístico especializado.

    Nas fotografias de Luiz Braga, nos anos 1980, muitas vezes surgiam lambe-lambes. Esse artista ‘documentou’ a prática fotográfica corriqueira daqueles grupos ‘populares’ que lhe interessavam. Na última década, a cultura fotográfica das populações periféricas mudou, acompanhando as transformações tecnológicas e perceptivas de escala global, sem deixar de possuir um acento local. É comum encontrar banners fotográficos adornando paredes de casas em Belém, substituindo as foto-pinturas e os porta-retratos de outros períodos.

    Cyro Almeida nos apresenta um vendedor: um charcuteiro em sua barraca. Se, na série, a fotografia de outros comerciantes (o fruteiro, por exemplo) explora o contraste de cores vivas e sedutoras, aqui a paleta é cinzenta, fria, rompida apenas pelo vermelho do cacho de linguiças que pende ao centro. O vendedor nos encara, isto é: encarou a câmera no momento do registro, e sua imagem agora olha em nossos olhos por meio da obra fotográfica. Sua feição parece sisuda, grave, como alguém que nos desafia. Ela se diferencia da feição de seu duplo, captada em ano anterior, impressa e usada para adornar a barraca. Ali, o charcuteiro também fitou a câmera e agora nos fita, mas sua face é mais aberta e despreocupada.

    Dois vendedores nos olham nessa obra de Cyro Almeida, e eles são, ao mesmo tempo, uma imagem diferente do mesmo personagem. Dois duplos de um homem e também de si mesmos, que nos indicam uma hipótese já mais ou menos filosoficamente atestada: nenhum duplo ‘é’ aquilo que procura duplicar. As imagens são e não são as coisas das quais são imagens – as ‘ausências’ de que elas buscam oferecer um substituto.

    Já se vão mais de três séculos e meio que Diego Velázquez pintou As meninas, e mais de cinco décadas que Michel Foucault analisou esse quadro. Não pretendo, aqui, reinventar a roda ou aprofundar qualquer tipo de debate sobre a ideia ocidental de ‘representação’. O que me interessa em Isolamentos e fluxos é um certo manejo da representação.

    As imagens que circulam cotidianamente nos grandes meios de comunicação e nas redes sociais digitais – fabricando uma periferia percebida como violenta, arriscada e interditada aos seus Outros – são, certamente, um duplo da violência real, experimentada como problema urbano. Ao mesmo tempo, esse duplo é capaz de criar uma outra cidade (em nós), que se sobrepõe ao Outro e seus territórios, e os interdita.

    A arte é capaz de desengatilhar essas imagens e nos fazer perceber nossa relação com as mesmas? Para essa pergunta a exposição não é capaz de oferecer uma resposta. Mas, em um mundo em que as práticas fotográficas são onipresentes e envolvidas pelos interesses mais diversos e escusos, parece importante que a arte se arrisque a uma compreensão antropológica de nossa relação com as imagens.

     

    REFERÊNCIAS:

    BELTING, Hans. Antropologia da imagem. Tradução de Artur Morão. Lisboa: KKYM; EAUM, 2014.

    DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: 34, 2013.

    FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Muchail. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

    PEQUENA rota do insuspeitável. Cyro Almeida (Site). Disponível em <https://www.cyroalmeida.com/arupa/index.php/pequena-rota/>, acessado em 19 de janeiro de 2019.

    Originalmente publicado em: Arte & Crítica, n° 49 – Ano XVII. Revista da Associação Brasileira de Críticos de Arte. Março de 2019. 
    Disponível aqui.
    Isolamentos e fluxos | Mariano Klautau Filho

    O ato fotográfico se torna para muitos artistas, para além da imagem fotográfica realizada como resultado, um exercício de contato e conhecimento do outro. É dessa experiência essencial que a fotografia vem modificando a tradição da fotografia de rua e do retrato. Cyro Almeida faz um cruzamento hábil desses dois gêneros quando percorre os bairros São Brás, Guamá, Condor, Jurunas e Cidade Velha, num percurso cujas extremidades abrigam os mercados de São Braz e do Ver-o-Peso.

    O trajeto escolhido pelo artista não só marca seu interesse pela cultura urbana e o modo de vida dos habitantes dos bairros populares como também sua posição reativa a uma cultura da violência que vem sendo disseminada nas cidades brasileiras. O constante alerta que o artista recebia para não circular em diversos bairros da cidade se tornou um desafio para a realização do trabalho.

    Cyro Almeida é mineiro, mora em Belo Horizonte e portanto pode ser visto como um tipo de “estrangeiro” ou “viajante urbano” a encontrar suas diferenças e semelhanças no outro. Tal contingência não o intimidou, pois sua convivência com a cidade desde 2009 só amplificou a ideia de que a relação com o outro, poder estar nos lugares e captar a vida que flui no cotidiano de Belém. O resultado é uma fotografia franca, sensível na experiência do contato, precisa nos enquadramentos em que a persona e seu ambiente estão em uma harmonia dissonante aos discursos sobre os perigos da cidade. Há certa paz nas imagens, muito provavelmente pela qualidade da experiência entre fotógrafo e retratado. Há certo caos nas camadas cromáticas, anúncios populares, placas e barracas. O trabalho de Cyro Almeida se faz livre do discurso do exotismo e está mais envolvido no interesse em compreender os lugares que resulta em uma curiosa mistura de atitude solene, desprendimento e rigor formal.

    Isolamentos e fluxos reflete de certo modo o trajeto, as paradas, os tempos mortos em que é possível estar com o outro, as outras dinâmicas de aceleração da cidade que não estão no discurso sobre a violência iminente e que, na contracorrente, propõe um ensaio que refaz o sentido da tradição – o retrato, a fotografia de rua – e avança no que pode ser elementar no trabalho que é a fotografia como ação realizada com o outro.

    Apresentação da exposição Isolamentos e fluxos. Cyro Almeida. Espaço Cultural Banco da Amazônia. Belém, 2018.
    Olhar sobre a cidade: uma proposta de expansão da percepção visual através da fotografia | André Luis Lima Parente
    Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Artes Visuais e Tecnologia da Imagem da Universidade da Amazônia como requisito para obter o título de Licenciatura em Artes visuais e Tecnologia da Imagem. Orientadora: Mestra Simone Moura. Belém, 2018.

    Resumo: 

    Este trabalho de conclusão de curso trata acerca da fotografia como auxiliadora no processo de expansão da percepção visual sobre a cidade. Tendo como métodos de pesquisa: O bibliográfico, documental e o estudo de caso. Para coleta de dados foi realizada uma oficina de fotografia de rua. Neste trabalho é relatado as vivencias e experiências do autor com relação ao espaço urbano, o próprio aborda a fotografia no seu aspecto histórico, em relação ao registro das transformações da cidade, principalmente na segunda metade do século XIX. É explicado de forma breve sobre a percepção visual e a intencionalidade da fotografia. Como exemplo de fotógrafos de rua é falado sobre Eugène Atget, Cyro Almeida e Luiz Braga pois esses três artistas possuem as características fotográficas que compactuam com a proposta de uma ação educativa desenvolvida pelo autor desta pesquisa que também é citado. O planejamento, a execução e as dificuldades da oficina intitulada: “Oficina de Fotografia de rua – Uma forma de expandir a percepção visual da cidade ” são descritas neste trabalho e no final desta pesquisa há as considerações finais.

    Texto completo aqui.
    Rota do insuspeitável: a rotina da periferia belenense, do Guamá ao Ver-o-Peso, nas fotografias de Cyro Almeida | Lais Azevedo

    Em formato tabloide, a publicação não leva o mais recente caso de homicídio às mãos dos moradores de Belém. As fotografias não trazem sangue ou rostos semicobertos. Intitulado “Pequena Rota do Insuspeitável”, o projeto do fotógrafo mineiro Cyro Almeida começou a ser distribuído nas ruas durante a última semana, mostrando para os belenenses não a violência, mas a beleza que eles muitas vezes não enxergam nas periferias da cidade. A pesquisa e obra contemplada com o XV Prêmio Marc Ferrez de Fotografia, da Funarte, será apresentada oficialmente hoje, às 19h, em um bate-papo na Fotoativa, com entrada franca.

    Mercado de São Brás, Feira do Guamá, Praça Princesa Isabel, Complexo do Jurunas e Porto do Sal são alguns dos lugares por onde o artista circulou distribuindo o resultado de sua pesquisa, dividida em quatro etapas: mapear, fotografar, editar e distribuir. Os cinco bairros escolhidos para sua abordagem, ele explica, estão interligados pela rota das vans que fazem transporte alternativo. “Eles mesmos gritam quando passam: ‘Guamá ao Ver-o-peso!’”, diz ele. E quando inscreveu o projeto para a Funarte, ele conta que usou essa ideia das rotas das vans como justificativa para ligar os pontos que já fotografava.

    “Desde 2009, quando eu vinha para Belém, os dois lugares que eu fotografava era o Guamá e o Ver-o-Peso. Criei assim um conceito e forma de organizar os lugares que ia fotografar. Além disso, posso te dizer que há uma paisagem comum entre esses lugares. Não só uma paisagem inanimada, mas humana, que acho bastante interessante. Tanto que quando você olha o tabloide é difícil de distinguir o local onde foram feitas”, justifica. Ao todo, a obra traz 26 fotografias e teve impresso 5 mil exemplares.

    O próprio título do projeto, “Pequena Rota do Insuspeitável” vai na contramão do que muitos belenenses declararam ao fotógrafo enquanto ele se aventurava pela cidade. “Dizem que esses lugares devem ser evitados, que vou ser roubado e sou envolvido por um extremo cuidado das pessoas. Até chego a acreditar que falar de uma maneira repetida do perigo que existe nesses bairros só reforça essa violência”, critica.

    Formato

    Desde que inscreveu o projeto, Cyro também já sabia que o produto da pesquisa seria um livro de fotografias em formato de jornal tabloide. A primeira razão é por ser um formato ligado ao noticiário de crimes. “E não é só em Belém que é assim, mas em capitais como Belo Horizonte, onde moro, ou em Salvador, onde já passei bastante tempo”, pontua o fotógrafo.

    Ele destaca que nesses mesmos jornais sempre há a exposição do corpo feminino. “Você vê uma morte – normalmente de um homem tido como bandido – e junto uma mulher seminua”, descreve. Por isso, em seu tabloide há logo na contracapa uma mulher muito bonita, “mas com outra figuração desse corpo, que não é o dos tabloides convencionais”, diz o artista.

    A outra razão para o formato é que, assim, ele poderia fazer um livro de fotografias artísticas, mas que circulasse de forma massiva. E não descarta fazer do trabalho uma exposição. “Não carrego discurso de ser contra galeria, até pretendo um livro de outro formato, mas nesse momento, com esse financiamento da Funarte, queria que ele chegasse até os lugares que fotografei”, justifica.

    Repercussão

    Na verdade, para o fotógrafo os extremos da cidade estão mais ligados do que parece.

    Ao entregar um exemplar a uma feirante no Ver-o-peso, ela reconheceu nas páginas a foto de Astrogilda, outra feirante, só que do Complexo do Jurunas.

    “Ela disse: ‘Olha, é a sogra do meu filho’. E isso me chamou atenção, que pontos diferentes da cidade tenham estabelecido esse encontro”, diz Cyro Almeida. Já no Jurunas, foi Vandescley quem reconheceu o irmão, fotografado no Porto do Sal. “‘Esse aqui é meu irmão, Ascley’, ele disse, e me mostrou. Então é muito legal ver como a própria circulação não fica restrita ao bairro e pessoas fotografadas. Depois, o próprio Ascley, quando fui ao Porto do Sal, me convidou para almoçar com a família dele”, conta.

    Mas também há reações como a de uma feirante do Jurunas, que afirmou não ter gostado do resultado do trabalho. “Ela disse que não gostou porque eu fotografei muita gente feia e uma parte feia de Belém, e que tem lugares muito mais bonitos e pessoas mais fotogênicas. E eu pude conversar com ela essa ideia de beleza pré-estabelecida e de olhar para a cidade por outro viés”, explica Cyro.

    Alguns comentários críticos se dirigiram não aos personagens, ou à paisagem, mas ao processo do fazer fotográfico. Um homem, por exemplo, reconheceu que o formato tabloide permitia às fotografias voltarem para os locais fotografados. “Ele disse: ‘Que legal, porque tem muito fotógrafo que vem no Jurunas, tira foto e nunca mais volta, a gente não vê o que foi feito’. Sem eu precisar explicar, ele teve essa compreensão”, comemora o fotógrafo, com a alegria de quem alcançou seus objetivos.

    Originalmente publicado em: Jornal Diário do Pará. Belém, 22/02/2017.
    Memória Involuntária | Ronaldo Entler

    Cada tempo constrói seus rituais em torno da imagem, numa interação própria entre os desejos que uma sociedade expressa e as tecnologias que estão disponíveis para acolhê-los. Se nos acomodamos demais ao nosso próprio tempo, muitos desses rituais parecem sem sentido: soam artificiais, afetados e desnecessários. Mas as imagens são por si mesmas impuras. Elas se encarregam de mostrar aos olhares mais receptivos aquilo que de cada momento sobrevive nos novos rituais. Encarregam-se também de encontrar em cada tecnologia uma porosidade que permita colocá-las em diálogo com formas que parecem superadas. As poses e os trejeitos diante da câmera mudam, mas o esforço de produzir relatos sobre nossa existência e nossas identidades permanecem. As tecnologias avançam mas, com frequência, elas mesmas se tornam instrumentos de uma arqueologia que busca dar respostas ao presente escavando as camadas de imaginário que foram se sobrepondo ao longo da história.

    Os selfies das redes sociais e as fotopinturas são experiências que surgem em tempos e contextos distantes. Mas têm em comum o esforço de abrir a imagem àquilo que um sujeito fantasia sobre si mesmo. Essas imagens são carregadas de virtualidade, não porque porque sejam menos verdadeiras do que qualquer outro retrato, mas porque são claramente o agenciamento de uma memória que se quer deixar. Em “Memória Involuntária”, esses rituais se encontram modulando linguagens, técnicas e tempos diversos.

    Cyro Almeida parte de selfies publicados nas redes, uma imagem própria de uma geração que não é a sua. Convida seus autores a reencenar aquelas poses para uma câmera de médio formato, dispositivo estranho à agilidade das câmeras de celular que geraram os selfies. Em seguida, mestre Julio dos Santos, que já havia incorporado o photoshop à sua rotina de trabalho, retoma as técnicas tradicionais da fotopintura para adicionar uma nova dose de fantasia à construção desses retratos. Não é o caso de buscar uma verdade sobre esses personagens. A imagem é um lugar de encontro em que cada sujeito deixa um pouco de si para a construção de uma memória coletiva.

    Originalmente publicado em: Icônica, 2016. Disponível aqui.
    A fotografia como representação social: olhares sobre um mesmo tema | Cristina de Lima Cardoso
    Monografia apresentada ao curso de Artes Visuais Licenciatura da Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG, como requisito para a obtenção do título de licenciado em Artes Visuais. Orientador: André Borges Meyerewicz. Belo Horizonte, 2015.

    Resumo: 

    Este trabalho estuda a relação estabelecida entre a imagem e a leitura do espectador, com o intuito de descobrir os modos pelos quais a imagem fotográfica representa aspectos sociais. Mostra a fotografia como arte e pela leitura de Umberto Eco como uma obra aberta. E leituras realizadas tanto do espectador quanto do autor do objeto de estudo, a série fotográfica “Dandara”, exposta em 2014, no Palácio das Artes, pela Fundação Clóvis Salgado.

    Texto completo aqui.
    A Ocupação Dandara, vista por Cyro Almeida | Débora Pereira Lopes Vieira
    Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Publicidade e Propaganda. Orientador: César Guimarães. Belo Horizonte, 2015.

    Resumo: 

    Tendo como foco o ensaio fotográfico que Cyro Almeida dedicou à Ocupacão Dandara, em Belo Horizonte, este trabalho revisita as diferentes modalidades de representação do outro na história da fotografia documental e caracteriza a relação que se estabelece entre o fotógrafo, a câmera e o sujeito fotografado no ato fotográfico, apoiado nas formulações de Anna Karina Castanheira Bartolomeu. Considerando as características constitutivas do ato fotográfico, buscaremos mostrar como Cyro Almeida constrói uma nova visibilidade para essa ocupação urbana e seus moradores ao fazer determinadas escolhas relativas ao espaço enquadrado e à presença dos sujeitos fotografados.

    Texto completo aqui.
    A cidade refletida | Tibério França

    Em As Cidades Invisíveis, o escritor italiano Italo Calvino nos conta sobre as viagens do maior navegador de todos os tempos: Marco Polo. O livro narra os encontros do mercador veneziano com o imperador mongol Kublai Khan. Impossibilitado de percorrer seu vasto império, o imperador se contenta com a descrição das incontáveis cidades que Marco Polo visitou. Uma delas é Valdrada, construída às margens de um lago. O viajante ao chegar em Valdrada depara-se com duas cidades, uma que desponta do lago e outra refletida, de cabeça para baixo, espelhando as edificações e habitantes da cidade acima do lago. Nada existe e nada acontece em uma sem que se repita na outra e isso inclui não somente as fachadas das casas e construções, mas também o seu interior com seus moradores e dirigentes. Cada gesto e cada ação tem seu correspondente na cidade invertida. O autor conclui a narrativa dizendo “as duas cidades vivem uma para a outra, olhando-se nos olhos continuamente, mas sem se amar”.

    Vejo as fotografias de Cyro Almeida como uma viagem a uma cidade como esta. Dandara é a cidade que aparece refletida no lago. Difícil não ver espelhados e invertidos os símbolos da cidade real. Difícil não perceber a virtualidade (leia-se ineficiência) de ações (ou não-ações) do Estado e a força sempre presente da lógica capitalista. O geógrafo britânico David Harvey em recente visita ao Brasil nos alertou que a urbanização incompleta é uma estratégia do Capital e que esta vem, normalmente, apoiada pelo Estado. Aqui reside a pertinência e a importância deste ensaio fotográfico neste momento específico em que vivemos. Dandara é este território de fronteira, invisível, invertida, tal qual a imagem que se formou dentro da câmera fotográfica de Cyro Almeida.

    Fotografia é uma palavra polissêmica, que pode ser empregada em diversos contextos. Então, de qual “fotografia” estamos falando? Podemos dizer que as fotografias que Cyro Almeida produziu em Dandara são documentais, mas isso poderia reduzir outras percepções deste ensaio. Foi André Rouillé quem melhor problematizou a relação entre fotografia e documento. Segundo o professor francês, “[…] uma fotografia-documento que compreende uma certa expressão, englobando um determinado acontecimento, embora não o represente, pode ser chamada de fotografia-expressão”. Outros pensadores da imagem técnica contribuíram nesta discussão cunhando termos como “fotografia autoral”, “documental-imaginário” ou simplesmente “fotografia contemporânea”, numa tentativa de entendimento das múltiplas possibilidades expressivas e narrativas deste meio na atualidade. Isto é valido para o registro de determinado evento, independente deste ser criado exclusivamente para a câmera ou não. A este respeito, Ronaldo Entler disse recentemente que no futuro os estudiosos dirão que “fotografia contemporânea foi um movimento que aconteceu na virada do século XX para o XXI”.

    Certo é que a fotografia se presta a diversos propósitos, interesses e finalidades. Investigar a intenção do autor pode ajudar a apontar caminhos para seu entendimento. Cyro Almeida é um fotógrafo com formação humanista e adotou uma abordagem antropológica para o desenvolvimento deste ensaio. Durante algumas semanas ele morou na comunidade, andou pelas ruas, falou com as pessoas, participou de assembleias, discutiu políticas públicas e ocupação urbana, e produziu fotografias. Ele empunhou sua câmera como um instrumento de mediação, buscando capturar os reflexos invertidos da cidade no espelho da sua câmera reflex digital. Aqui ele apresenta um recorte pessoal desta experiência.

    O próprio autor selecionou as imagens para o livro e para a exposição, reforçando a posição solitária do fotógrafo e do poeta, aguardando o momento certo de alinhar a câmera, o olho e o coração. Não é sem motivo que ele se posiciona preferencialmente de frente. Tal atitude não denota enfrentamento e sim acolhimento. O fotógrafo assume assim o papel de narrador, descrevendo em imagens pequenos aspectos do cotidiano, conduzindo o visitante por um labirinto de vidas e construções. Nestas fotografias, a cor é a comprovação do real e as imagens em preto & branco adquirem certo distanciamento temporal que parece reforçar a infinitude do conflito social presente há décadas no país. Impossível ainda não notar a presença indelével de crianças, já nos habituamos a vê-las brincando nas coberturas jornalísticas em regiões de conflito. Suas presenças pontuam nossa existência com a esperança de um futuro sempre melhor, por mais que a realidade insista em nos confrontar.

    Originalmente publicado em: Almeida, Cyro. Dandara. 1ª ed. Belo Horizonte, 2014.
    Reflected city | Tibério França

    In Invisible Cities, the Italian writer Italo Calvino tells us about the travels of the greater navigator of all times: Marco Polo. The book narrates the encounters of the Venetian Merchant with Mughal emperor Kublai Khan. Unable to wander through his vast empire, the emperor is content with the description of the countless cities visited by Marco Polo. One is Valdrada, built on the shores of a lake. Thus, upon arrival, the traveler faces two cities, one that emerges from the lake and the other that is reflected, upside down, mirroring buildings and inhabitants of the city above the lake. Nothing exists and nothing happens in one that is not repeated on the other, and this includes not only the facades of houses and buildings, but also their interior, with residents and owners. Every gesture and every action has its correspondence in the inverted town. The author concludes his narrative by saying that “the two cities live one for the other, looking at each other’s eyes continuously, but without loving each other.”

    I see the photos by Cyro Almeida as a trip to a city like this. Dandara is the city that appears reflected in the lake. It is hard not to see the symbols of the real city mirrored and reversed. It is hard not to notice the inefficiency of actions (or non-actions ) of the State and the ever-present force of the capitalist logic. The British geographer David Harvey, in a recent visit to Brazil, had warned us that incomplete urbanization is a comprehensive strategy of the capital and that it usually comes supported by the state. Here lies the relevance and importance of this photographic essay in this particular moment that we live. Dandara is this borderline, invisible, mirrored, alike the image that was formed inside Cyro Almeida’s camera.

    Photography is a polysemous word, which can be used in many contexts. Then, of which “photography” are we talking about? We can say that the photographs produced by Cyro Almeida in Dandara are documentary, but this could reduce other perceptions of this essay. It was Andre Rouille who best problematized the relationship between photography and document. According to the French Professor, “ ( … ) a photo – document comprising a certain expression, encompassing a particular event, though not representing it, can be named photography – expression.” Other thinkers of the technical image also contributed to this discussion coining terms like “authorial photography”, “documental – imaginary” or simply “contemporary photography”, in an attempt to understand the multiple narratives and expressive possibilities of the medium today. This is valid for a particular event, regardless of it being created exclusively for the camera or not. In this respect, Ronaldo Entler recently said that, in the future, scholars will say that “contemporary photography was a movement that happened at the turn of the twentieth century to the twenty-first.”

    Certain it is that photography works for diverse purposes, interests and functions. Investigating the author’s intent can help to point out ways for understanding it. Cyro Almeida is a photographer with a humanistic background and he adopted an anthropological approach to the development of this essay. For weeks he lived in this community, walked the streets, talked with people, attended meetings, discussed public policy and urban occupation and produced photographs. He wielded his camera as an instrument of mediation, seeking to capture the inverted reflections of the city, in the mirror of his reflex digital camera. Here he presents a personal frame of this experience.

    The very author selected the images for the book and exhibition, reinforcing the solitary position of the photographer and the poet, waiting the right moment to align the camera, eye and heart. It is not without reason that he positions himself preferably in front. Such an attitude does not denote confrontation, but rather consideration. The photographer thus assumes the role of narrator, describing small aspects of daily life in images, leading the visitor through a maze of buildings and lives. In these photos, the color is proof of the real and the images in black & white acquire certain temporal distance that seems to reinforce the infinitude of social conflict that takes place for decades in this country. It is impossible not to notice the indelible presence of children, as we are already used to see them in news coverage, playing in regions of conflict. Their presence punctuates our lives with the hope of an always better future, even with reality insisting in confronting us.

    Originally published on: Almeida, Cyro. Dandara. 1ª ed. Belo Horizonte, 2014.
    Poética e luta por uma nova sociabilidade urbana | Joviano Mayer

    Dandara nasceu da ocupação de um latifúndio urbano, durante as festividades de páscoa, em 9 de abril de 2009. Era quinta-feira santa quando cerca de duzentas pessoas, organizadas pelas Brigadas Populares e pelo Movimento Sem Terra, ocuparam um terreno que se encontrava em estado de completo abandono desde a década de 1970, localizado em Belo Horizonte, na região da Pampulha. A forte repressão policial motivou a presença massiva dos moradores das favelas do entorno, especialmente da Vila Bispo de Maura, que passou a noite e os dias que se seguiram tomada por militares do batalhão de choque. Também compareceu a grande mídia para dar ampla cobertura a mais nova “invasão de terra”, como foi chamada no noticiário nacional. Centenas de famílias sem-casa se cadastraram e se somaram à comunidade que, ao cabo da primeira semana, contabilizava mais de mil famílias.

    Cyro Almeida lança este lindo trabalho no ano em que Dandara completa cinco anos de existência. A ocupação retratada pelo artista – principalmente no início de 2011 – mudou muito de lá pra cá. A alvenaria substituiu por completo as lonas e as folhas de madeirite, muitas hortas foram plantadas, o número de cômodos das casas foi aumentado e os tijolos sem reboco, tão abordados nas imagens, começaram a ganhar revestimento. A igreja ecumênica retratada no início da construção, cuja imagem veio acompanhada por uma cruz que abrigava simbolicamente a morada de um joão-de-barro, encontra-se finalizada. De todo modo, é bonito perceber que o dinamismo da periferia, próprio do fenômeno urbano, não foi paralisado pela apreensão estática da fotografia. O discurso poético, tão bem articulado nos gestos, movimentos e olhares, mostra, sem a necessidade de contextualização, pessoas em luta pela sobrevivência na cidade do capital.

    Apesar do imenso apoio à causa, ainda hoje subsiste a situação de insegurança da posse diante da persistência da Construtora Modelo (proprietária do imóvel onde nunca construiu nada e nem pagou por ele) em desalojar as famílias. O poder público também persiste em tratar o conflito como caso de polícia, a cargo do judiciário, para se omitir inclusive no dever constitucional de prestação dos serviços públicos de saneamento básico, educação, saúde, entrega de correspondências e implantação de infraestrutura urbana.

    Dandara se autoconstruiu e se consolidou apesar de todas as adversidades que sofre uma ocupação organizada em confronto com o instituto da propriedade privada, mesmo se tratando de bem imóvel em situação de abandono e ofensa à função social. Ao longo desses cinco anos, foram realizadas cinco grandes caminhadas até o centro da cidade. No total, foram percorridos mais de cem quilômetros em busca de diálogo e negociação para impedir o desalojamento e a demolição das casas. Além das marchas, Dandara já ocupou a sede da Prefeitura municipal, a sede da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Regional Urbano (SEDRU), montou acampamento durante vários dias na Praça 7, no coração de Belo Horizonte (ocasião em que Cyro teve seu primeiro contato com os moradores), além de ter se somado a inúmeras outras mobilizações. Dandara, assim como a histórica Ceilândia tão bem retratada pelo cineasta Adirley Queirós, ou a Aldeia Maracanã covardemente desalojada no Rio de Janeiro, ou as experiências do Espaço Comum Luiz Estrela e da Praia da Estação em Belo Horizonte, é uma expressão contemporânea da luta pelo direito humano à cidade, a mesma luta que ganhou novos contornos depois das manifestações multitudinárias do inesquecível ano 2013.

    Cyro Almeida retrata o cotidiano sem receio de deixar explícitas as contradições que são próprias do conflito pela terra no meio urbano. Nesse sentido, a fotografia em que o verde das árvores ao redor da imagem contrasta com os blocos de concreto empilhados ao centro revela o conflito ambiental aprofundado pelo surgimento da ocupação em área ambientalmente frágil. Por outro lado, as fotografias expressam o esforço pela convivência harmoniosa com meio ambiente, tanto pelas imagens de hortas e outros cultivos, quanto pela imagem da planta que resultou da árdua demarcação de ruas e lotes, conforme o plano urbanístico elaborado pelos moradores com a assistência técnica de profissionais comprometidos com a luta dos pobres urbanos.

    O conjunto de fotografias que compõe este ensaio não deixa de ser um diário íntimo, registrado por Cyro principalmente durante o período em que morou na casa de algumas famílias da comunidade, nos meses de maio e junho de 2011. Viver a/na comunidade foi imprescindível para a captura do cotidiano, expresso em linguagem poética que transita pelo trabalho, pela religiosidade e pela infância. Muitas foram as pessoas que, assim como Cyro, registraram Dandara pelo olhar da câmera: Laís Rodrigues, Priscila Musa, Fabiana Leite, Richardson Pontone, Flávia Mafra, Barnabé, Giulio Di Meo. No trabalho de todxs elxs, como aqui, o signo da infância ganha destaque privilegiado. Felizes são as crianças que brincam nas ruas! No entanto, a alegria dos garotos que jogam peteca não busca romantizar a dura realidade de se morar numa ocupação, o que foi expresso, por exemplo, pela criança esguia, de olhar distraído, com os tijolos carregados por braços e mãos firmes.

    O tema do trabalho também perpassa grande parte das fotografias, seja na poesia insistente das roupas nos varais que coloca em evidência o trabalho invisibilizado das mulheres, guerreiras de Dandara, seja na rudeza dos pés calcados sobre a terra seca, quebrada pela força da chibanca, ou na mão calejada cheia de britas que irão compor o concreto armado do barracão. A explicitação do trabalho como componente imagético traz consigo uma intencionalidade política clara de mostrar aquelxs que constroem e vivem a cidade, em busca de uma nova sociabilidade urbana.

    Originalmente publicado em: Almeida, Cyro. Dandara. 1ª ed. Belo Horizonte, 2014.
    Poetics and struggle for a new urban sociability | Joviano Mayer

    Dandara was born after the occupation of an urban latifundia, during Easter celebrations, on April 09 2009. It was Holy Thursday when around two hundred people, organized by Brigadas Populares and the Movimento Sem Terra (MST), took over a piece of land which was totally abandoned since 1970’s, in Belo Horizonte, at Pampulha region. The heavy-handed police repression motivated the massive presence of those who lived in the favelas around, mainly those from Vila Bispo de Maura, which during the night and the following days was occupied by the police. The great media was also there for press coverage of the newest “land invasion”, as it was called in the national headlines. Hundreds of homeless families signed up and got together with the community which, after the first week, was over one thousand families.

    Cyro Almeida launches this beautiful work on Dandara’s fifth anniversary. The occupation photographed by the artist – mainly in 2011 – has changed a lot since then. Masonry work substituted all the canvas tents and sheets of plywood; many vegetable gardens were planted, and more rooms were built in the houses; the non-plastered bricks, usually in the images, started to be covered. The ecumenical church which was photographed in the construction’s initial phase, whose image was together with a cross – that symbolically had the João-de-Barro bird nest – is already finished. Anyway, it’s good to see that the dynamism of periphery, which is so typical of urban phenomenon, was not paralysed by the static of photography. The poetic speech, so well articulated in gestures, movements and stares, shows without need for contextualization, people striving for survival in the city of capital.

    Although the cause was supported by many people, until this day there’s a sense of uncertainty due to the persistence of Construtora Modelo (owner of the land which never built anything there, neither has paid for it) for displacing the families. Public authorities also continue approaching the conflict as a police case, in charge of the justice, so they can omit themselves from the state obligation of providing basic sanitation, education, health services, mail delivery and urban infrastructure implementation.

    Dandara built itself and has been consolidated in spite of all adversities faced by an occupation against the private propriety status, even though the real estate was abandoned and represented some offence against its social function. During these five years, five long marches downtown were taken. In the end, over one hundred quilometers were travelled, searching for dialogue and negotiation to prevent displacement and homes demolition. Besides the marches, Dandara has also occupied the headquarters of the city hall, the headquarters of the state secretariat of urban development (SEDRU), set up camp for several days at Seven Square, in the heart of Belo Horizonte (and this was the first time Cyro got in touch with Dandara residents), besides taking part in many mobilizations. Dandara, as well as historic Ceilândia (in the Brazilian Capital, Brasília) so well photographed by filmmaker Adirley Queirós, or Aldeia Maracanã, cowardly displaced in Rio de Janeiro, or the experiences of Espaço Comum Luiz Estrela and Praia da Estação, in Belo Horizonte, is a contemporary expression of the struggle for the human right to the city, the same struggle that got new outlines after the massive manifestation in the unforgettable year of 2013.

    Cyro Almeida portrays the daily routine with no fear of letting quite clear the contradictions proper to conflict over lands in the urban area. Thus, the photography in which the green from the trees around the images clashes with concrete blocks stacked in the center reveals the environmental conflict deepened by occupation in environmental fragile area. On the other hand, the photos express the struggle for harmonious coexistence with the environment, shown by images of vegetable gardens and some other plants, as well as for the image of the plan which ended up with the arduous struggle for the demarcation of streets and lots, according to the urban plan drafted by the residents with technical support by professionals committed to the struggle against urban poverty.

    The set of photos which compose this essay is also an intimate diary, recorded by Cyro, mainly in the period he was living with some families in the community, from May to June 2011. Living the/in the community was essential to capture daily life, which is expressed in poetic language which goes all the way through work, religiosity and childhood. There were many people who, as well as Cyro, recorded Dandara through the camera eye: Laís Rodrigues, Priscila Musa, Fabiana Leite, Richardson Pontone, Flávia Mafra, Barnabé, Giulio Di Meo. In their work, as in this one, the sign of childhood gets a privileged standing. Children who can play on the streets are happy. Nonetheless, the joy of kids who play shuttlecock does not seek to romanticize the harsh reality of living in an occupation, which was shown, for example, by the thin kind, with a distracted eye, with arms and firm hands carrying bricks.

    The theme of work also goes along with part of the photos, whether in the insistent poetry of clothes hanging on the lines that reveals invisible work from women, Dandara warriors, whether on the dry land, all broken by the strength of pickaxe or in the calloused hands, full of crushed rocks which will later be part of the reinforced concrete in the shack. Work made explicit as an image component brings a clear political intentionality of showing those who build and live the city, searching for a new urban sociability.

    Originally published on: Almeida, Cyro. Dandara. 1ª ed. Belo Horizonte, 2014.
    Mexeu com Dandara | Fernanda Regaldo e Roberto Andrés

    “Mexeu com Dandara, mexeu comigo”. Foi com esta frase, reproduzida em adesivos, camisetas e na internet, que muitos tomaram conhecimento da ocupação que leva o nome da guerrilheira negra, companheira de Zumbi dos Palmares. Aliás, foi assim que alguns ficaram sabendo da existência de movimentos de luta pela moradia. Dandara foi e é uma espécie de ícone das ocupações de Belo Horizonte, inserindo no imaginário da cidade uma prática e uma população cuja voz não estamos acostumados a ouvir.

    A ocupação Dandara é contemporânea da retomada do carnaval de rua e da Praia da Estação, movimentos nascidos na classe média, com os quais passou a compartilhar as ruas da cidade. Hoje, o nome Dandara representa para muitos a síntese de ideais entre grupos – social e espacialmente distantes – que poucas vezes na história toma seu lugar. Dandara virou um mote, e a frase de protesto um slogan que chama ao envolvimento.

    Mas não são tantos os que de fato colocaram os pés na terra vermelha da divisa de Belo Horizonte com Ribeirão das Neves, onde um riacho corre ao norte e o céu parece mais amplo. As fotos de Cyro dão peso, profundidade, textura e relevo para a Dandara do imaginário coletivo. Revelam pessoas, casas, móveis, detalhes – objetos do olhar – que parecem guardar em si uma espécie de energia transformadora, mas que talvez não seja mais do que o fazer-se da vida cotidiana – um menino deitado sobre um lençol cuja estampa é um enorme rosto sorridente, um bumbo sobre a cômoda, um sofá coberto pela imagem do Super-Homem, um carrinho de neném, os ‘gatos’ de água e luz, pilhas e mais pilhas de tijolos.

    Cyro captura um por fazer que pertence à ordem das coisas de toda e qualquer boa periferia brasileira, com sua infalível dose de incerteza e sua imensa e transbordante força construtiva e criativa – aquilo que chamamos de resistência. As composições do acaso que ele revela, nesse sentido, nos permitem desmitificar ideias heroicas sobre os revolucionários que ali habitam.

    Mas há também algo que faz com que aqueles objetos em espera adquiram, no contexto de Dandara, um sentido próprio. Há muito de místico nas imagens da ocupação – que de terra de ninguém se transforma em terra prometida, repetindo, só que ao contrário (ou com outros protagonistas, aqueles que, desde então, ficaram de fora da história que ainda se conta nos livros), o grande mito de Brasília. Como bem aponta o antropólogo e urbanista James Holston, a capital do país nasce também de uma concepção mística de um lugar “escolhido” – aquilo tinha que ser ali – e esse misticismo impregna a vida da cidade.

    Cyro acena para esse misticismo no transcorrer do ensaio, desvelando, sobre o cotidiano, uma fantasmagoria – divindades que pairam sobre crianças, um bilhete da mega-sena sobre o livro de orações, um crucifixo no peito, bandeiras erguidas sobre vergalhões, pombos, santos, homens assombrosos e frases pintadas nas paredes – que se entrelaça ao próprio sentido da ocupação (entre as ruas batizadas com nomes de revolucionários e humanistas, a de Zilda Arns recebe um clássico “Deus é fiel”). E talvez não seja à toa que, na culminação noturna da sequência, a reunião de moradores se pareça tanto, a ponto de se confundir, com uma celebração religiosa. Dandara, eldorado político contemporâneo e, a seu modo, utopia projetada, contrapõe em sua simplicidade, em seu inacabado, em sua promessa, a distopia de Brasília também em sua construção simbólica.

    Cyro conheceu Dandara em 2010. Era um daqueles para quem direito à terra era sinônimo de reforma agrária. Dandara mexeu com ele. Em 2011, morou na ocupação por alguns meses, acompanhando o dia a dia das pessoas e fotografando. Naquele momento, os moradores viviam a iminência de um despejo. As fotos que aqui vemos poderiam ter sido a crônica visual de uma morte que estava há muito anunciada, mas o vento soprou de outro jeito. Melhor assim – hoje em Belo Horizonte a luta pela moradia se fortalece e as ocupações se multiplicam, pondo em xeque o fiasco da política habitacional do município e do país e a desigualdade do acesso à terra e à cidade.

    E, se Dandara resiste firme, podemos ter certeza de que ela não é a mesma que Cyro fotografou há quase três anos. Talvez esteja mais dura, mais real, com muros mais altos e menos jardins. A melhor maneira de saber é dar um pulo lá.

    Originalmente publicado em: Almeida, Cyro. Dandara. 1ª ed. Belo Horizonte, 2014.
    You mess with Dandara, you mess with me | Fernanda Regaldo e Roberto Andrés

    “You mess with dandara, you mess with me”. It was through this sentence, displayed on adhesives, t-shirts and in the internet, that many learned about the occupation that takes the name of the black guerrilla and wife of the Zumbi dos Palmares. Actually, this was how some people learned about house fighting movements. Dandara was and still is some kind of icon of land occupation movements in Belo Horizonte, including in the city’s imaginary some practices and a population whose voice we are not used to hearing.

    The occupation of Dandara is concurrent with carnival in the street and with Praia da Estação, both movements emerged from the middle class that started to share the town streets. Today, the name Dandara represents for many the synthesis of ideals shared by groups – socially and spatially distant – something that seldom occurs in history. Dandara has become a motto, and the protest sentence a slogan which calls for involvement.

    But not so many stepped on the red dirt limit between Belo Horizonte and Ribeirão das Neves, where a stream flows north and the sky looks bigger. Cyro’s photographs give weight, depth, texture and relief to the Dandara who inhabits the collective imagination. They show people, houses, furniture, details – that seem to keep inside themselves some type of transformative energy, which perhaps is no more than part of daily life – a boy lying on a sheet printed with a huge smiling face, a bumbo on the top of a chest of drawers, a couch covered by the image of Superman, a baby’s stroller, clandestine energy and water connections, stacks and stacks of bricks.

    Cyro captures something which belongs to the same order of things of every Brazilian periphery, with its infallible portion of uncertainty and its enormous and overflowing constructive and creative strength – that we call resistance. The compositions of chance that he reveals, in this situation, allow us to demystify heroic ideas about the revolutionaries who live there.

    But there is also something that allows those objects on hold to gain, in the context of Dandara, a meaning of their own. There’s something very mystical in the occupation images – nobody’s land becomes the promised land, repeating, to the contrary (or with different protagonists, those who, since then, were excluded from the history which is told in books) of the great myth of Brasília. As it is rightly observed by the Anthropologist and Urbanist James Holston, the Brazilian capital is born also from a mystical conception of a “chosen” place – it had to be there – and this mysticism permeates the city life.

    Cyro beckons this mysticism all through his essay, uncovering some fantasmagoria about daily life – divinities around the children, a lottery ticket on the top of the prayer book, a crucifix on the chest, flags raising on rebars, pigeons, saints, amazing men and different sayings painted on the walls – that interweave to the very meaning of occupation (among the streets that were baptized with names of revolutionaries and humanists, Zilda Arns street receives a classic “God is faithful”. And it is not by accident that in the night culmination of sequence, the residents’ meetings appear in such a way as to be mistaken for a religious celebration. Dandara, a contemporary political Eldorado and, in its own way a planned utopia, opposes in its simplicity, in its incompleteness, in its promise, the dystopia of Brasília also in its symbolic construction.

    Cyro got to know Dandara in 2010. He was the type for whom the right to a piece of land was a synonym for land reform. Dandara messed with him. In 2011, he lived in the occupation for a few months, following the daily routine of people there and taking photos. At that moment, the residents were living under constant threat of eviction. The photos we see here could have been the visual chronicle of a long foretold death, but the wind blew the other way. For the best – nowadays in Belo Horizonte the struggle for housing gets stronger and occupations are increasing, putting in evidence the failure over the municipal and federal housing policy as well as inequality of access to land property and to the city.

    And if Dandara strongly resists, we can be sure it is not the same place Cyro photographed almost three years ago. Maybe now it is tougher, more realistic, with higher walls and fewer gardens. The best way to check this is by going there.

    Originally published on: Almeida, Cyro. Dandara. 1ª ed. Belo Horizonte, 2014.
    O retrato da luta de um povo | Jaqueline da Mata

    Fotógrafo registrou o dia a dia dos moradores de baixa renda e vai expor seu trabalho em 2014 no Palácio das Artes

    A fotografia é a porta de entrada para Cyro Almeida “conhecer” pessoas desconhecidas. Esse “encontro”, como diz, é primordial em sua vida. Aos 29 anos, ele já rodou boa parte do Brasil, sempre com uma câmera fotográfica na mochila, atrás de imagens fortes que possam promover debates. Por dois anos fotografou e chegou a morar na comunidade Dandara, de famílias de baixa renda, todas lutando por moradia em Belo Horizonte. O resultado será exposto em março de 2014 no Palácio das Artes.

    O ensaio na Dandara aconteceu entre 2010 e 2012. Parte desta série foi mostrada pela primeira vez em maio de 2012 na exposição coletiva “Segue-se Ver O Que Quisesse”, montada no Palácio das Artes. Para conseguir transmitir a intensidade do que via, o artista resolveu morar no local por dois meses.

    As fotos remetem ao cotidiano da comunidade, com crianças brincando, outras trabalhando, rostos enrugados e cansados, enfim uma realidade bem diferente de quem vive na cidade.

    “O que mais comoveu no assentamento foi a situação de moradia daquelas famílias.A maior parte morava de aluguel ou de favor e, a partir dali, elas montaram barracos e, por mais precário que fosse, conseguiam reestruturar a renda familiar”, diz Almeida.

    Ímãs de geladeira

    A ousadia que se percebe em seu trabalho desafia a timidez e modéstia de Almeida. Resistente em dar entrevista, ele não quis ser fotografado. “O mais importante é, por meio da fotografia, instigar a indignação, o debate na sociedade. Por esta razão viajo pelo Brasil de forma alternativa, conhecendo lugares, pessoas, produzindo e vendendo fotografias como artista de rua”, diz o fotógrafo.

    Depois que fotografa, ele faz ímãs das imagens e vende pelos bares da capital. É daí que tira seu sustento.

    Artista faz ‘documentário autoral’

    Apesar de ter nascido em São Paulo, o fotógrafo Cyro Almeida considera-se mineiro, por ter ido ainda com poucos meses de vida para Araxá, onde foi criado.

    Filho de comerciantes, Cyro formou-se em psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mas assim que pegou o diploma partiu mundo afora como fotógrafo independente e artista visual.

    “O tipo de trabalho que realizo pode ser denominado como documentário autoral. Conto por meio de imagens uma história que reflita minha visão íntima e pessoal sobre temas específicos”, explica Almeida.

    Vídeodocumentário

    Cyro Almeida também está engajado no projeto do artesão, fotógrafo e blogueiro Rafael Lage, que está produzindo o vídeo documentário “Malucos de Estrada”, previsto para ser lançado em dezembro deste ano.

    “O vídeo mostra um panorama sobre a reconfiguração do movimento hippie no Brasil. São artesãos da Praça Sete que lutam não só pelo direito de comercializar seus produtos no local, mas também por uma identidade cultural própria. Não trabalhamos com a ideia do hippie, mas com a reconfiguração que o movimento hippie teve no Brasil ao se mesclar com as culturas brasileiras”, explica o fotógrafo.

    Originalmente publicado em: Jornal Hoje em Dia. Belo Horizonte, 29/09/2013.