A arte contemporânea já acumula um debate extenso a respeito das questões instigadas ou condicionadas pela prática fotográfica. De certo modo, a arte contemporânea por si só muitas vezes opera de maneira ‘fotográfica’, mesmo quando não recorre à fotografia em sentido estrito. É necessário pensar o trabalho de Cyro Almeida dentro desse repertório teórico e artístico fornecido pela história recente.
Cyro Almeida vive em Belo Horizonte e desenvolveu parte de sua produção artística em Belém. Nesta última cidade, realizou entre abril e junho de 2018 a exposição Isolamentos e fluxos, com curadoria de Mariano Klautau, no Espaço Cultural Banco da Amazônia. Aqui, quero examinar alguns aspectos de obras nessa mostra.
Em parte das fotografias de Cyro Almeida, são as personagens que estão evidenciadas – coletividades, individualidades e singularidades demarcadas pelo retrato. Em outros momentos, os cenários também saltam para o primeiro plano, com sua cultura visual típica da periferia de Belém.
No conjunto, a mostra parece se debater com um (entre outros possíveis) grande referencial para a fotografia contemporânea em Belém: Luiz Braga. Manifesta um diálogo com o retrato social realizado por Braga desde o final dos anos 1970, captando personagens de grupos subalternizados, e também se relaciona com a série No olho da rua ou Visualidade popular, em que o artista se voltou para a cultura visual desses grupos e as reelaborou em uma fotografia de viés modernista e construtivo.
É um fato notável que Cyro Almeida perceba, absorva, aprofunde e desdobre questões colocadas pela obra de Luiz Braga. Indica que os artistas brasileiros, e mais ainda os que atuam/atuaram fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, nas últimas décadas conseguem ter força suficiente para se inscreverem na dinâmica da produção artística de gerações posteriores. Esse talvez seja um fenômeno recente: o esboço de uma superação da amnésia que condiciona a produção artística especializada no Brasil, no geral voltada para artistas, obras, conceitos, categorias, questões e cosmovisões estrangeiras.
Porém, para um público com algum conhecimento sobre a fotografia contemporânea em Belém, essas convergências entre as obras de Cyro Almeida e as de Luiz Braga são percebidas sem muito esforço. Isto é o que as obras nos dão se nos aproximarmos delas em busca de uma interpretação esteticista, preocupada sobretudo com as aparências e superfícies. É preciso ir além.
Em Belém, há uma questão importante que sua obra levanta, com a investigação de trajetos e da simbolização de espaços, especialmente periferias urbanas. Parte das fotografias expostas em Isolamentos e fluxos foi realizada por Cyro Almeida no projeto Pequena rota do insuspeitável, produzido com recursos do XV Prêmio Marc Ferrez de Fotografia, Funarte, 2015. O site do artista descreve o projeto nos seguintes termos:
Pequena rota do insuspeitável aborda cinco bairros periféricos de Belém-PA, considerados áreas de risco da violência e conectados pelo transporte urbano alternativo, as vans. As fotografias não tratam da violência urbana e por isso desafiam a pensar como a representação estereotipada, a distinção social e fantasia do medo, quando repetidas exaustivamente contra essas regiões periféricas, reforçam estigmas e a própria violência que criticam.
O grande tema de fundo que parece interessar a Cyro Almeida é a cidade. Ou melhor, as cidades, já que com sua produção ele fricciona territórios e grupos, que coexistem sem coabitar. “Pequena rota do insuspeitável” e “Isolamentos e fluxos” são títulos que remetem a esses deslocamentos que sua fotografia promove nos espaços urbano e simbólico. Sua série Dandara, realizada entre 2011 e 2014 a partir de uma ocupação na periferia de Belo Horizonte, também toca no assunto.
Flanando de maneira algo sistemática, nas periferias interditadas pelo discurso do risco, Cyro Almeida constrói um repertório de imagens em sua prática fotográfica, ao mesmo tempo em que subverte ou desconstrói outro repertório. O artista parece querer desengatilhar algumas imagens sobre aquelas periferias. Não as suas próprias, que maneja por meio da prática fotográfica, mas as imagens dos discursos que estereotipam certos territórios como espaços de violência potencial.
Cyro Almeida expõe não apenas as fotografias, resultado de seu encontro com essa cidade arriscada ou proibida, mas apresenta também seu trajeto e sua relação com esse Outro, e assim termina revelando as imagens da violência discursiva que se sobrescrevem a essas periferias. Seu trabalho parece querer remover uma grossa casca de estereótipos, múltiplas camadas que escondem sob si as cidades ‘reais’ e seus personagens.
Entre os anos 1980 e a última década, Luiz Braga mudou seu foco das periferias urbanas de Belém para as comunidades interioranas na Ilha do Marajó. Nessa transição, talvez haja alguma busca por uma ‘identidade’ local ou regional, já ausente nas periferias que lhe interessaram no início da carreira. E é plausível considerar que haja, também, para o fotógrafo, essa interdição das periferias urbanas por conta da violência exacerbada (seja ela discursiva ou concreta).
Cyro Almeida traça uma rota na contramão: sai do sudeste do país, Belo Horizonte, para se relacionar com um centro urbano mais violento (ao menos nas estatísticas). Parece que lhe interessa conhecer e apresentar, em uma abordagem documental e poética, as cidades recalcadas pelas imagens e discursos da violência.
Tanto a relação de Luiz Braga quanto a de Cyro Almeida com os grupos sociais das periferias de Belém (e suas visualidades) é mediada pela alteridade. Há uma diferença difusa – cultural, étnica, de classe? – que envolve esse contato entre os fotógrafos e seus personagens. Essa relação com um Outro tem sido uma das chaves de recepção crítica da obra de Luiz Braga. E faz parte, também, da leitura de Isolamentos e fluxos, de Cyro Almeida, ainda que em uma direção distinta. Nas palavras de Mariano Klautau, no texto curatorial da exposição:
O ato fotográfico se torna para muitos artistas, para além da imagem fotográfica realizada como resultado, um exercício de contato e conhecimento do outro. É dessa experiência essencial que a fotografia vem modificando a tradição da fotografia de rua e do retrato. Cyro Almeida faz um cruzamento hábil desses dois gêneros (…).
O trajeto escolhido pelo artista não só marca seu interesse pela cultura urbana e o modo de vida dos habitantes dos bairros populares como também sua posição reativa a uma cultura da violência que vem sendo disseminada nas cidades brasileiras.
Como desengatilhar ou desarmar as imagens que se sobrescrevem às periferias, construídas por uma vasta rede discursiva? É possível ‘violentar’ a violência simbólica que interdita e estereotipa espaços e cidades?
Parto da noção de imagem formulada por autores como Hans Belting e Georges Didi-Huberman, compreendendo que nossa relação com as imagens se dá em um processo que envolve: a) nossa percepção; b) um ‘objeto’; e c) a imagem que construímos a partir de nossa percepção desse objeto. É o que Belting chama de tríade imagem-meio-corpo. As obras de arte são ‘meios’ para as imagens, tanto quanto o somos nós próprios, com nossas percepções e estruturas de pensamento.
As imagens não ‘estão’ exatamente nas obras de arte, como se fossem um dado físico adicionado aos objetos e que existisse neles indefinidamente, pigmentos de tinta numa superfície. As imagens estão antes na relação de grupos sociais com esses objetos – elas dependem das obras e, ao mesmo tempo, existem ‘fora’ delas, pois existem sobretudo em nós. Na terminologia de Belting, podemos tratar das obras de arte como ‘meios imaginais’, que produzem ou modificam nossas próprias ‘imagens mentais’.
Isolamentos e fluxos parece propor uma leitura antropológica sobre nossas relações com as imagens que fabricamos e consumimos. É uma abordagem sobre como o ‘nós’ que designa o campo artístico especializado – um ‘nós’ cultural, étnico e de classe? – se relaciona com as imagens sobre as periferias urbanas. Imagens sobre a violência, que muitas vezes condicionam nossas relações com as cidades, seus espaços, territórios e personagens.
O modo como Cyro Almeida registra a relação de populações periféricas com as práticas fotográficas também é interessante para ilustrar o assunto. Algumas obras captam outros quadros dentro do seu próprio enquadramento, imagens presentes no ambiente fotografado, que se relacionam de algum modo com a imagem construída pelo artista. Em uma das fotografias na mostra, um banner se coloca como meio para a cultura fotográfica periférica, talvez (pelas dimensões) um simulacro da fotografia ou da pintura do campo artístico especializado.
Nas fotografias de Luiz Braga, nos anos 1980, muitas vezes surgiam lambe-lambes. Esse artista ‘documentou’ a prática fotográfica corriqueira daqueles grupos ‘populares’ que lhe interessavam. Na última década, a cultura fotográfica das populações periféricas mudou, acompanhando as transformações tecnológicas e perceptivas de escala global, sem deixar de possuir um acento local. É comum encontrar banners fotográficos adornando paredes de casas em Belém, substituindo as foto-pinturas e os porta-retratos de outros períodos.
Cyro Almeida nos apresenta um vendedor: um charcuteiro em sua barraca. Se, na série, a fotografia de outros comerciantes (o fruteiro, por exemplo) explora o contraste de cores vivas e sedutoras, aqui a paleta é cinzenta, fria, rompida apenas pelo vermelho do cacho de linguiças que pende ao centro. O vendedor nos encara, isto é: encarou a câmera no momento do registro, e sua imagem agora olha em nossos olhos por meio da obra fotográfica. Sua feição parece sisuda, grave, como alguém que nos desafia. Ela se diferencia da feição de seu duplo, captada em ano anterior, impressa e usada para adornar a barraca. Ali, o charcuteiro também fitou a câmera e agora nos fita, mas sua face é mais aberta e despreocupada.
Dois vendedores nos olham nessa obra de Cyro Almeida, e eles são, ao mesmo tempo, uma imagem diferente do mesmo personagem. Dois duplos de um homem e também de si mesmos, que nos indicam uma hipótese já mais ou menos filosoficamente atestada: nenhum duplo ‘é’ aquilo que procura duplicar. As imagens são e não são as coisas das quais são imagens – as ‘ausências’ de que elas buscam oferecer um substituto.
Já se vão mais de três séculos e meio que Diego Velázquez pintou As meninas, e mais de cinco décadas que Michel Foucault analisou esse quadro. Não pretendo, aqui, reinventar a roda ou aprofundar qualquer tipo de debate sobre a ideia ocidental de ‘representação’. O que me interessa em Isolamentos e fluxos é um certo manejo da representação.
As imagens que circulam cotidianamente nos grandes meios de comunicação e nas redes sociais digitais – fabricando uma periferia percebida como violenta, arriscada e interditada aos seus Outros – são, certamente, um duplo da violência real, experimentada como problema urbano. Ao mesmo tempo, esse duplo é capaz de criar uma outra cidade (em nós), que se sobrepõe ao Outro e seus territórios, e os interdita.
A arte é capaz de desengatilhar essas imagens e nos fazer perceber nossa relação com as mesmas? Para essa pergunta a exposição não é capaz de oferecer uma resposta. Mas, em um mundo em que as práticas fotográficas são onipresentes e envolvidas pelos interesses mais diversos e escusos, parece importante que a arte se arrisque a uma compreensão antropológica de nossa relação com as imagens.
REFERÊNCIAS:
BELTING, Hans. Antropologia da imagem. Tradução de Artur Morão. Lisboa: KKYM; EAUM, 2014.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: 34, 2013.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Muchail. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
PEQUENA rota do insuspeitável. Cyro Almeida (Site). Disponível em <https://www.cyroalmeida.com/arupa/index.php/pequena-rota/>, acessado em 19 de janeiro de 2019.
Originalmente publicado em: Arte & Crítica, n° 49 – Ano XVII. Revista da Associação Brasileira de Críticos de Arte. Março de 2019.
Disponível aqui.